O Direito à Saúde e a Colisão entre os Princípios do Mínimo Existencial e Reserva do Possível

O Direito à Saúde e a Colisão entre os Princípios do Mínimo Existencial e Reserva do Possível

janeiro 24, 2020

O presente trabalho possui o escopo de analisar se a colisão entre os princípios da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial pode ser resolvida a partir da prevalência deste sobre aquele, no que tange à obrigatoriedade da prestação positiva dos direitos individuais, fundamentais e sociais pelo Estado detentor do poder, evitando que o mesmo apresente impedimentos como orçamentos indisponíveis, questões de proporcionalidade ou razoabilidade, entre outros, que escondem verdadeiras desculpas a fim de tentar se eximir da responsabilidade de promover direitos sociais, especialmente o direito à Saúde, objeto deste trabalho, que guarda íntima ligação com a Dignidade da Pessoa Humana, apresentando conceitos de cada um dos mencionados princípios, os requisitos e fundamentações utilizadas em cada seara destes, mencionando casos concretos e julgados importantes tanto de primeiro grau quanto em grau de recurso, para análise da pertinência da mitigação do direito à saúde, trazendo de forma reflexiva um olhar crítico e humanizado do Mínimo Existencial, essencial ao ser humano, além de questionar a legalidade Estatal na escolha de qual indivíduo será beneficiado com uma obrigação que deveria ser promovida a todos que, comprovadamente hipossuficientes na forma da lei, dela necessita, devendo ser observada e questionada as consequências jurídico-sociais da violação dessa obrigação, bem como a função do Judiciário nesta árdua tarefa de guarida constitucional.

Palavras-Chave: Mínimo Existencial. Reserva do Possível. Direito à Saúde. Dignidade da Pessoa Humana.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar de forma crítica, sobre a impossibilidade de mitigar o princípio do mínimo existencial no que se refere ao direito fundamental, essencial e social à saúde. Direito este, obrigatoriamente ofertado pelo Estado, que por vezes se vale daquilo que ouso comparar com a ideia de “necropolítica” (política da morte) sustentada pelo filósofo historiador camaronês, Achille Mbembe, que consiste basicamente no poder e capacidade que o Estado possui, de decidir sobre quais vidas merecem ser vividas ou matáveis, ou seja, quem realmente importa para a política vigente. Acrescente-se a isto, todas as outras incontáveis condições para o oferecimento de direitos relacionados à saúde devendo ser, na visão discricionária do Estado, proporcional e/ou razoável.

O princípio da Reserva do Possível surgiu no ano de 1972 (mil novecentos e setenta e dois) em julgamento realizado pelo Tribunal Constitucional Alemão, no caso mundialmente conhecido como Numerus Clausus (número restrito), onde a Corte Alemã analisou ação judicial promovida por estudantes que não conseguiram admissão nas escolas de Medicina das cidades de Hamburgo e Munique, em razão da limitação do número de vagas em cursos superiores. Destaca-se, diante do presente princípio, ainda que o Estado possua os recursos necessários disponíveis, não é obrigado a prestar algo que não seja razoável ou proporcional.

O Mínimo Existencial é um direito positivo, consagrado pela Doutrina como sendo o núcleo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo , inciso III como fundamento da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 e que abrange o conjunto de prestações materiais necessárias e absolutamente essenciais para todo e qualquer ser humano, independente da condição que recaia sobre ele, como por exemplo o atendimento básico e eficiente de saúde.

2.O DIREITO À SAÚDE E A COLISÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DO MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL.

2.1 O Princípio da Reserva do Possível

O princípio da Reserva do Possível manifestou-se no ano de 1972 (mil novecentos e setenta e dois) em julgamento realizado pelo Tribunal Constitucional Alemão no caso mundialmente conhecido como Numerus Clausus (número restrito). Neste julgamento, a Corte Alemã analisou demanda proposta por estudantes que não haviam sido admitidos nas escolas de Medicina das cidades de Hamburgo e Munique, ambas da Alemanha, em razão da limitação do número de vagas em cursos superiores.

Ao decidir a questão, a Corte alemã entendeu que o direito pleiteado encontra restrição no Princípio da Reserva do Possível. Dessa forma, de acordo com o referido Tribunal Constitucional, não se poderia exigir o comprometimento integral do Estado a fim de tornar o acesso ao ensino superior acessível a absolutamente todos os estudantes que assim o quisessem.

Em atenção ao caso exposto, as advogadas Doutoras Juliana Tiemi Muruyama Matsuda, Helida Maria Pereira e Luciana Camila de Souza, aduzem o seguinte:

Mesmo que o Estado dispusesse dos recursos, segundo a reserva do possível instituída pelo tribunal alemão, não se poderia impor a ele uma obrigação que fugisse aos limites do razoável, tendo em vista os fins eleitos como relevantes pela Lei Fundamental. Não se poderia exigir o comprometimento de programas vinculados à satisfação de outros interesses fundamentalmente protegidos, para o fim de tornar o acesso ao ensino superior possível a absolutamente todos os indivíduos que assim o quisessem. Fazê-lo, seria colocar a liberdade individual muito acima dos objetivos comunitários, comprometendo e deturpando a própria noção de Estado Social.

Ainda sobre o tema, leciona o jurista brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet, que o Tribunal alemão entendeu que:

(…) a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.

Destaca-se, diante do presente princípio que, mesmo que o Estado possua os recursos necessários disponíveis, não é obrigado a prestar algo que não seja razoável.

Assim sendo, a Reserva Legal, em sua história, não observa apenas a existência de recursos materiais e orçamentários, mas inclusive, a razoabilidade do que se pretende, ou seja, o que realmente precisa ser garantido no âmbito difuso e coletivo, afastando, por consequência, o interesse privado.

O professor Fernando Facury Scaff sustenta que os direitos prestacionais, especialmente o da saúde, não se disponibilizam integralmente de uma única vez, pois são fornecidos progressivamente pelo Estado, de modo que, passo a passo, em um ritmo crescente, vai se tornando cada vez mais concretizado, o que, segundo o autor, não ocorre com outros direitos fundamentais.

Scaff apresenta ainda a ideia de que a Reserva do Possível possui três dimensões: a verdadeira disponibilidade fática do capital para a efetivação dos direitos fundamentais, a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e já na perspectiva do titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e razoabilidade.

Sabe-se, no entanto que sobre o entendimento acima exposto, recaem bastante críticas, tornando-o controverso, pois é bem verdade que a prática daquilo que se defende pelos respeitáveis professores acima mencionados, ainda é distante de um “ritmo crescente que está se tornando cada vez mais concretizado”, nas palavras do impoluto professor Fernando F. Scaff.

A imagem que se tem, é justamente a oposta: degradação e fragilidade dos direitos prestacionais, especialmente o da saúde, de forma que o ritmo desacelerado da prestação deste direito torna a concretização do mesmo, cada vez mais remoto e ineficaz por parte do Estado coator, inclusive quando condiciona a promoção de direitos fundamentais à outros tantos fatores de interesse próprio.

2.2 A Reserva do Possível e o Direito Brasileiro

O referido princípio foi introduzido no Brasil como forma de frear a aplicação dos direitos fundamentais individuais, inclusive para controlar as políticas sociais por parte dos Tribunais, pois de acordo com a reserva, só pode ser exigido do Estado aquilo que é proporcional, razoável e que está dentro do planejamento orçamentário. Argumentos estes que são fortemente defendidos pelos estados brasileiros em demandas que versam sobre políticas públicas de implementações dos direitos sociais, tal como o da saúde, a fim de se eximir da responsabilidade de prestá-los de forma digna e integral.

Consequência objetiva que se extrai da presente lide vertical entre interesse estatal e difuso, é a competência do Poder Judiciário para decidir se a escassez de recursos sustentada pelo Poder Estatal constitui fator suficiente que justifique a implementação, ainda que deficiente, dos mencionados direitos sociais ou até mesmo a não implementação.

Nesse contexto, o autor Vicente de Paulo Barretto, acredita que a teoria da proporcionalidade e razoabilidade muitas vezes funciona como verdadeira “desculpa” para o descumprimento de obrigações impostas ao Estado brasileiro pela Constituição Federal Cidadão de 1988.

Ainda não são suficientemente firmes os critérios adotados que explicam a aceitação e aplicação do argumento da reserva do possível como limitador da concretização dos direitos sociais. No entanto, embora ainda não exista um conceito plenamente definido no direito brasileiro, é possível afirmar que o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando defende a Reserva, em relação aos direitos sociais, está voltada muito mais para a chamada Teoria dos Custos (responsável pela escolha que faz o Estado em sua aplicação de recursos), do que para a abordagem alemã, já mencionada, que indica a proporcionalidade e razoabilidade. Mas quando o direito social que se pleiteia é o da saúde, a firmeza da corte pela inaplicabilidade da teoria dos custos e da reserva prevalece, “sempre que a sua invocação comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial”, é o que se extrai ipsis litteris dos Recursos Extraordinários ARE 727864 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 04/11/2014 e ARE 745745 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/12/2014, que entendem ser “dever estatal a assistência à saúde e de proteção à vida, não podendo invoca-los para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais e prestacionais, constitucionalmente impostos ao poder público”.

2.3 Critério de aplicação

Uma das teorias que admite a restrição aos direitos fundamentais, com a exigência de sua justificação, é a relativa.

A teoria relativa preconiza que o conteúdo essencial de cada direito fundamental é determinado por meio de uma ponderação entre os outros direitos e princípios que estejam em conflito no caso concreto. De acordo com essa teoria, não é possível delimitar o conteúdo essencial de determinado direito fundamental. Outrossim, ainda que fosse possível ser delimitado esse conteúdo essencial, não seria um valor absoluto, imutável, podendo variar. Em outras palavras: as restrições aos direitos fundamentais podem existir sem afetar seu conteúdo essencial, desde que respeitem o princípio da proporcionalidade.

Em atenção às teorias relativa e absoluta, não há um consenso doutrinário. Ana. M D’Ávila Lopes, mestre em Direito Constitucional, explica que a teoria relativa não apresenta proteção considerável ao direito individual quando este esteja em conflito com uma pretensão estatal, pois ocorreria a prevalência de um direito sobre o outro. Por outro lado, acrescenta que a teoria absoluta oferece proteção constante à matéria de direito fundamental.

Frise-se, em atenção a linha de pensamento e estudo do presente trabalho, com máximo respeito ao entendimento da doutrina oposta, não se pode concordar com a ideia de restrição aos direitos fundamentais, avocando a ponderação de valores para delimitar conteúdos indisponíveis e moderar garantias que não podem ser moderadas, em razão da natureza do bem jurídico aqui discutido: a vida e a dignidade da pessoa humana.

Assim, a teoria relativa não poderia servir como critério para não aplicação do princípio do mínimo existencial, já que aceita a minoração de direitos, o que pode causar enorme insegurança jurídica e a própria injustiça.

2.4. O Princípio do Mínimo Existencial e o Direito brasileiro

Trata-se de um princípio essencial, consagrado pela Doutrina como sendo o núcleo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo , inciso III da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988, vinculando o “mínimo”’ aos direitos relacionados às necessidades humanas intrínsecas, sem as quais não é possível “viver com dignidade”. Aqui incluem-se os direitos sociais do Art. da CRFB/88 (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados), os Princípios, Direitos e Deveres Individuais e Coletivos (Art. da CRFB/88) e demais Direitos ligados à Dignidade da Pessoa Humana espalhados pelo ordenamento jurídico, a exemplo do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do Art. 225, caput da Constituição Federal. Assim, a citada Carta Magna assegura especialmente a proteção de direitos, sejam eles privados, públicos ou transindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos).

Neste contexto, é exigido do Estado que ofereça condições para que haja eficácia plena na aplicabilidade dos referidos direitos, sem qualquer impedimento, em cumprimento ao artigo § 1º da CRFB/88, que aduz em seu texto serem de aplicação imediata as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais.

Dessa forma, o princípio do Mínimo Existencial, engloba o conjunto de prestações absolutamente essenciais para todo e qualquer ser humano hipossuficiente nos termos da lei, independente da condição permanente ou provisória que recaia sobre ele.

Para o Professor Andreas Krell, o “padrão mínimo social” para sobrevivência humana, incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso à uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia; o conteúdo concreto desse mínimo, no entanto, variará de País para País.

O entendimento acima sustenta a lógica da não recepção integral dos modelos alemão, estadunidense e canadense pelo Brasil no que se refere a aplicação da Reserva do Possível.

Como aplicar de forma integral um modelo de interpretação, (que permite a limitação de direitos em alguns casos) de um País desenvolvido como a Alemanha, num País subdesenvolvido como o Brasil, desconsiderando sua cultura, muitas vezes corrupta, seu povo, recursos, forma de governo, educação, etc ?

Pesquisa realizada no site da Agência de Inteligência Central – CIA World Factbook, a Alemanha já possui um sistema público de saúde básico e eficiente que atende a 92% da população. Não bastando, as estatísticas do ano de 2018, fontes do mesmo site, indicaram uma aplicação de 11,3% do Produto Interno Bruto na Saúde Pública. Já os Estados Unidos, ocupa a 2º posição no ranking dos Países que mais aplicam o seu PIB em saúde, com investimento de 17,1%. Enquanto isso no Brasil, esta mesma aplicação corresponde a 3,8% no ano de 2018, aplicação esta, num sistema de Saúde Pública que funciona de forma morosa e ineficiente.

Na mesma linha é o pensamento do especialista em Direito Tributário e Financeiro, Horacio Guillermo Corti:

[…] El contenido mínimo indisponible. Todos los derechos tienen un contenido mínimo que debe ser asegurado por los Estados con independencia de los recursos disponibles. Al contenido mínimo le corresponde una obligación mínima, que no depende de decisión jurídica (asi legal) o material del Estado. De acuerdo a los referidos Princípios “um Estado incurre en uma violación Del Pacto cuando no cumple lo que el Comité de Derechos Econômicos, Sociales y Culturales denomina ‘una obligación mínima esencial de asegurar La satisfacción de por lo menos los niveles mínimos esenciales de cada uno de los derechos (…). Por ejemplo, incurre prima facie en una violación del Pacto um Estado Parte en el cual um número significativo de personas se ven privados de alimentos esenciales, atención básica de salud, habitación y vivienda mínima o las formas más básicas de enseñanza. Estas obligaciones mínimas esenciales son aplicables Independiente de la disponibilidad de recursos en el país de que se trate o cualquier outro factoro dificultad” Es decisiva la aclaración siguiente, que explicita la cuestión presupuestaria y que expresa el principio de la primacia de los derechos sobre las razones presupuestarias: “la escasez de recursos no exime a los Estados de ciertas obligaciones mínimas esenciales en la aplicatión de los derechos econômicos, sociales y culturales.[…]

3. Direito à Saúde

A saúde é um direito que compõe o rol dos direitos sociais contidos no artigo da Constituição Cidadã de 1988, que surgiram durante a Revolução Industrial.

Ademais, o artigo 196 da CRFB/88 aduz expressamente que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Além disso, o art. 197 da Carta Magna dispõe que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

É importante destacar que o direito ao mínimo existencial independe de expressa previsão no texto constitucional para poder ser reconhecido, visto que decorre da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. O contrário, contudo, não ocorre. Para que Direitos, especialmente os fundamentais, não sejam promovidos pelo Estado, estes deverão estar expressos na Lei a fim de que não sejam considerados. Portanto, em nenhum artigo da Lei Maior se observa minoração de direitos fundamentais (e assim espero que permaneça daqui para frente) ao longo das gerações constitucionais (salvo, de forma pontual, em caso de guerra declarada).

Ainda, a Lei Orgânica da Saúde nº 8080/1990, dispõe, em seu artigo , caput, que a saúde é direito de todos, devendo ser provida pelo Estado, responsável por garanti-la por meio de políticas econômicas e sociais que visem à prevenção e à redução de riscos de doenças e outros agravos. Dispõe também nos parágrafos deste artigo, que há fatores determinantes e condicionantes da saúde, como a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a educação, o transporte, dentre outros.

Não se trata, pois, de um direito “fácil” ou que pode ser prestado de qualquer maneira, mas de uma garantia complexa, que necessita do complemento de vários outros fatores determinantes e condicionantes para serem dignamente contemplados.

Conforme ensinamentos do professor Pedro Lenza (2014), os direitos sociais, e neles inserido a saúde, são direitos de segunda dimensão que se apresentam como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda, consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil.

Muito embora os artigos 196 e 197 da CRFB/88, acima citados, tenham caráter de norma programática, o STF proferiu decisões com entendimento de que o Estado não pode se eximir do seu dever constitucional, alegando serem de caráter programáticos e que por esse motivo ainda não será possível a concretude destes.

O “Dever Ser” constitucional, manifesta que a saúde além de social, é um direito fundamental, bem como que a desídia do Estado induz que o Poder Judiciário imponha o seu cumprimento, sob as penas legais, tal como imposição de multa diária.

É o que entende o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no RI: 50002253320174036138 SP, Relator Juiz Federal Renato Pacheco Chaves de Oliveira, Data de Julgamento 28/03/2019, aduzindo em seu teor que a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Importante se faz registrar, alguns outros julgados do STF em relação à soberania do direito à Saúde no Brasil como sendo fundamental, indisponível e plenamente exigível. Como é o exemplo do Mandado de Segurança julgado no ano de 2000, pela Segunda Turma, DJ 31-03-2000, PP-00057 EMENT 16 VOL-01985-02 PP-00266, indicando que “incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente”. Acrescentou ainda que o Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

De forma mais detalhada e enfática em seus argumentos, apresenta-se o julgado da Corte na decisão do RE 198265 RS, onde foi defendido que “o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196), que traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar -políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores de doenças raras, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, o que representa consequência constitucional indissociável do direito à vida”.

Soma-se a estes argumentos: “o reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade”. (STF – REAgR: 271286 RS, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 12/09/2000).

Já na declaração de inconstitucionalidade, a ADI 3.430, o Ministro Relator Ricardo Lewandowski aduziu que “o serviço público de saúde é essencial, jamais pode se caracterizar como temporário”.

Ainda no mesmo sentido, o RTJ 200/191-197:

Direito à vida e à saúde. Dever estatal de assistência à saúde resultante de norma constitucional (CF, arts. 196 e 197). Obrigação jurídicoconstitucional que se impõe ao poder público, inclusive aos Estadosmembros da Federação. Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão inconstitucional imputável ao Estado de Pernambuco. Desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal (RTJ 183/818-819). Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796). A questão da reserva do possível: reconhecimento de sua inaplicabilidade, sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197). O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo poder público.

No caso do Recurso Extraordinário 566471, o ministro Marco Aurélio apenas corrobora toda a ideia neste artigo defendida de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido por políticas sociais e econômicas. Frisou que o acesso à saúde é um bem vinculado à dignidade do homem, e que o direito ao mínimo existencial é um direito fundamental do cidadão, estando ligado a condições mínimas de dignidade.

3.1 A Saúde e Mínimo Existencial

O princípio do mínimo existencial ligado à saúde, está presente no direito brasileiro, servindo de objeto para diversos julgados e estudo doutrinário, conforme apontados acima, sendo argumento-princípio indispensável para efetivação dos direitos fundamentais sociais, com tendência a assegurar condições sociais mínimas, especialmente no âmbito da vitalidade, como: a compra e distribuição de medicação, realização de cirurgias, exames, consultas, internações dentre outras ações destinadas aos cuidados da saúde e preservação da dignidade da pessoa humana.

Por esse motivo, o direito a saúde é o próprio mínimo que o Estado pode garantir ao cidadão, pois este é um direito intrínseco ao existencial humano, nem que para garantir sua efetividade seja necessário o suplemento de verbas autorizadas pelo legislativo, ou até mesmo que se busque guarida na seara do Direito Financeiro, na forma da Lei 4.320/1964, que trata das suas normas gerais, dispondo de forma pertinente que haverá subvenções sociais para a garantia de serviços essenciais de assistência médica, social e educacional, nos limites das possibilidades financeiras, sempre que os recursos privados aplicados a esses objetivos revelarem-se mais econômicos para o Poder Público.

A responsabilidade, portanto, não poderá jamais ser eximida, já que solidária perante os entes da Federação e se o Estado não garante de forma administrativa, caberá ao poder Judiciário zelar por sua efetiva promoção, de forma litigiosa.

3.2 Prevalência do Mínimo Existencial sobre a Reserva do Possível em relação ao Direito Fundamental à Saúde.

Inicialmente, cumpre ressaltar que nas palavras do professor Paulo Alexandrino: “a Reserva do Possível não significa um “salvo conduto “para o Estado deixar de cumprir suas obrigações sob uma alegação genérica de que “não existem recursos suficientes”.

A teoria relativa, como já analisada, sustenta que os direitos fundamentais podem ser restritos sob o argumento da ponderação de valores, de forma que o Estado poderá realizar escolhas diante do mais necessitado ou mais urgente. Em atenção e respeito a este posicionamento, não restam dúvidas de que no atual cenário brasileiro movido à escândalos e verdadeiros espetáculos de corrupção na Administração Pública Direta e Indireta, não há mais a certeza da segurança jurídica, a confiança que estamos de fato amparados pela concretude dos princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade e Eficiência. Por consequência, a referida teoria não poderia se fazer predominante, dando abertura à discricionariedade do Estado que naturalmente já é detentor do poder, a escolher de forma arbitrária e de acordo com seus próprios interesses (orçamentário/financeiro), qual indivíduo mais necessita de auxílio vital: o idoso hipossuficiente que aguarda a cirurgia de transplante, como no caso da AC 0005143-03.2014.8.13.0693 MG, da apelação nº 0830791-81.2015.8.12.0001, além do RESP 1772323 CE 2018/0267858-9, os que sofrem de câncer que não possuem condições de realizar o exame de PET, essencial para o tratamento e diagnóstico, como nos casos dos Mandados de Segurança 0001294- 60.2014.8.06.0000 CE e 0075644-87.2012.8.06.0000 CE ou a criança recémnascida com HIV transmitida verticalmente pela mãe.

Para o Desembargador Federal Fagundes de Deus, “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Nesse sentido, não prospera a invocação da reserva do financeiramente possível para justificar excessiva mora no que tange à implementação de políticas públicas constitucionalmente definidas”. Afirma ainda que em relação ao direito à saúde não se justifica a invocação do princípio da reserva do financeiramente possível.

Nesta mesma linha de entendimento, o Ministro Herman Benjamin do Superior Tribunal de Justiça:

A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da”limitação de recursos orçamentários”frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, abordamos conceitos acerca dos Princípios do Mínimo Existencial e da Reserva do Possível, as principais características de ambos, formas de aplicação no Direito brasileiro, bem como as implicações causadas quando a Reserva se sobrepõe ao Mínimo Existencial e concluímos que o direito social à saúde não pode ser mitigado, pois intrínseco à própria dignidade da pessoa humana, razão de ser e existir humano, dessa forma jamais quedando sob a discricionariedade do Estado, detentor do poder e coator, escolher a qual indivíduo em sua peculiaridade, deverá gozar do dever prestacional estatal, e qual não gozará, ideia que se aproxima do chamado “necropolítica”, política da morte, defendida pelo filósofo Achille Mbembe, perfeitamente pertinente no tocante ao desenvolvimento deste trabalho.

Cumpre destacar que todos os objetivos propostos foram cumpridos, ao analisarmos a colisão entre os princípios da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial e a impossibilidade jurídico-social da prevalência deste sobre aquele. Análise esta que permite concluir pela certeza de que o direito a Saúde deve ser pleno, de eficácia imediata e sem condicionamentos aos hipossuficientes.

Este artigo científico foi bastante importante, na medida em que a Saúde é direito fundamental que merece ser exaltado pois diz respeito a todos de forma indistinta e não deve ser mitigado sob quaisquer argumentos, como aqueles amplamente defendido pelo Estado e mencionados na presente. Ademais, trata-se de relevante matéria jurídico social o tema deste trabalho, essencial para perceber que ações direcionadas a impedir a prestação desse direito é prejudicial à sociedade, especialmente os hipossuficientes e não deve proceder, sob pena de insegurança jurídica e drásticas injustiças.

 


Mirena. M Ribeiro
Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá
Advogada Correspondente no Estado de Sergipe
Pós Graduanda em Direito Público

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